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Apresentacao do Livro: “A relação médico-doente: um contributo da Ordem dos Medicos”
Coordenação de José Poças
Auditório | Arquivo Nacional da Torre do Tombo
25 de Novembro de 2019 | 18h00
Discurso do Dr. José poças
Gostaria de começar esta minha intervenção por agradecer vivamente a todos os que contribuíram para levar a cabo a feitura deste Livro e desta Cerimónia. Vindo quase todos referidos no último texto, escrito enquanto editor, permitam-me que dê destaque às seguintes entidades: em primeiro lugar, naturalmente, aos Autores dos textos, por terem sabido transmitir a mensagem pretendida; de seguida, aos restantes membros da Comissão Editorial (corporizada na pessoa do colega Miguel Guimarães, bastonário da OM e, por inerência, seu Presidente) por terem colaborado para ter sido possível chegar à forma consensual do projeto que estamos hoje a dar publicamente à estampa; como não podia deixar de ser também, a todas as que financiaram ambas as iniciativas, onde se incluem a própria OM, a FCG e as Sociedades Médicas nele referenciadas, uma vez que sem a sua desinteressada generosidade, tudo não teria passado de uma vaga ideia sem concretização prática; depois, a quem contribuiu decisivamente para que esta Cerimónia assumisse a forma que podem constatar, ou seja, à Companhia do Teatro S. Carlos, á Torre do Tombo, à casa Ermelinda de Freitas e ao Sr. John Lechaud, por o trabalho desenvolvido ser a roupagem ideal para tornar mais chamativa a importância que lhes atribuímos; ainda à Editora ByTheBook e a empresa Grafisol, pelo extremo profissionalismo do seu trabalho que é facilmente constatável no belíssimo aspeto gráfico do Livro; ao Dr. António Barreto, porque estou certo que as sábias palavras que proferirá daqui a minutos, ficarão certamente gravadas para sempre na nossa memória, tendo em consideração a agudeza e a pertinência a que nos habituou nos seus textos e comentários; e, finalmente, a quem se quis deslocar hoje a este auditório para assistir a tão simbólicas apresentações, pois ao quererem ser as principais testemunhas desta aventura que iniciamos há cerca de ano e meio, ficam assim incumbidas de colaborar na sua divulgação, porque tal significa estarem a disseminar a sua importante mensagem.
Não poderia deixar de referir ainda dois outros factos que, ao coincidirem, acrescentam muito ao simbolismo de ambas as iniciativas, a saber: em primeiro lugar, a data em que se realizam, pois festejámos ontem o octogésima primeiro aniversário da OM; o segundo, o local onde decorre, pois aqui reside o maior acervo documental da Nação, salvo pela iniciativa da insigne figura de Alexandre Herculano, um historiador e um intelectual que se caracterizou, entre outros reconhecidos atributos, por ter cultivado a verdade dos factos históricos acima de tudo. Ora, este Livro, para além daquilo que adiante se dirá, também refere alguns episódios relevantes da História da Medicina e os textos produzidas pelos seus Autores têm a veracidade dos relatos como um referencial inalienável.
Desengane-se quem pensa que, ao adquirir, oferecer, consultar ou ler este Livro, irá estar perante uma obra literária digna de figurar como candidata a um qualquer prémio que exista dessa índole. Não. De todo. É que, infelizmente, nenhum dos autores, mau grado do seu genuíno entusiasmo, foi fadado com o génio literário de Fernando Namora ou de Miguel Torga, que tão justamente se notabilizaram no domínio da escrita, apesar de serem médicos por formação académica.
Mas, tal, não é, estou sinceramente convicto, um obstáculo intransponível para que o mesmo seja percecionado por outrem, como veículo apropriado de dois principais propósitos: o primeiro, o de se assumir como uma oportuna reflexão plural de alguns membros da nossa classe e de um restrito número de personalidades de outras áreas complementares do saber, de entre as quais se incluem duas pessoas que amavelmente aceitaram o nosso convite, enquanto personificação das perspetivas, quer do Doente, quer do Cidadão, sem as quais a mensagem final seria seriamente amputada da imprescindível visão plural que desejamos ver reconhecida, num momento particularmente conturbado e com tantas incertezas e ideias preconceituosas que importará saber interpretar e contextualizar com adequação, coragem, isenção e celeridade; o segundo, o de contribuir para apoiar uma futura candidatura à UNESCO, no sentido de esta prestigiada entidade internacional vir a reconhecer a Relação Médico-Doente como Património Imaterial da Humanidade, nem que para isso se torne necessário criar uma figura que seja, por definição, como neste caso, transversal e independente do País, Nação ou Povo, por a todos pertencer por direito próprio.
Reflexão escrita que não se restringiu assim, à explanação dos principais e perenes fundamentos em que o exercício da Medicina se deve basear, mas que pretende também transmitir a noção de que a atividade clínica vive sobretudo dos seus contextos, nos quais avultam necessariamente sentimentos e realidades antagónicas, como êxitos e derrotas, esperanças e frustrações, sofrimento e alegria, porque o percurso do Homem na Terra é feito de um misto de vida, de saúde, de doença e de morte, e em todas essas etapas o médico pode ser chamado a intervir em socorro do seu semelhante, como se pode constatar nas histórias clínicas da Maria Filomena, do Joaquim, da Alexandra, da Cristina, da Mariana, do Gonçalo, do Fernando, da Susana, da Isabel, do Breivik, do João Manuel, do Hélder Milheiro, do António, do Stephen, da Helena, do Cardoso, da Inês, da Regina, do Matias, do Simão, da Maria, da Gracinda, do Hugo, do Bruno, do Manuel, da Alzira, do Antero e da Ana Paula, tal como de alguns outros referenciados por intermédio de siglas ou, mesmo, sem outra qualquer designação concreta, não porque os desconsideremos enquanto Seres Humanos de pleno direito que efetivamente são, mas tão só para melhor defender a inviolabilidade do segredo profissional a que estamos deontologicamente obrigados desde sempre. Um eloquente exemplo disso, é a história em que um dos autores, enquanto clinico diretamente envolvido, pretendeu celebrar a cura do seu doente, ao terminar a derradeira consulta programada, surpreendendo-o com um espontâneo convite para ambos irem saborear um almoço de lampreia, pois nesta relação tão sem par, também há lugar para se saber quebrar com as regras mais próprias do convencionalismo dogmático e impessoal, por tal aparente ousadia ser perfeitamente admissível e nada reprovável, embora a título excecional, nalgumas circunstâncias particulares, como no caso vertente.
Este não é, pois, um hermético e inconsequente Livro de alguns Médicos para os restantes colegas de profissão. Mais, o seu objetivo só será realmente atingido, se chegar e for entendido, quer pelos doentes e demais cidadãos, quer também pelos decisores políticos, porque as questões ligadas à saúde e à doença, ao seu tratamento e à sua prevenção, extravasam em muito os limites da ciência e da política, pois devem estar também imbuídas de ética e de humanismo, integrando assim a formação e a educação cívica de todas as gerações. Como já afirmei algures, “a atividade médica não é uma profissão como as demais. Tão só porque saber fazer face à saúde e à doença, à vida e à morte de quem nos solicita ajuda, são tudo menos coisas irrelevantes, mas antes aquilo que mais devemos prezar. Porque a defesa intransigente dos valores da ética e do relacionamento humano são a nossa mais preciosa herança civilizacional coletiva, dado que estamos investidos no honroso, irrecusável e intemporal papel de sermos os mais interessados e competentes advogados de defesa dos nossos doentes”. E, ainda, como escrevi recentemente num artigo publicado na Revista da OM, porque “não se é bom médico, nem tampouco bom governante, desconhecendo o singular âmago da natureza humana ou sendo-se indiferente às consequências do sofrimento e da deficiência, dado que isso é condição imprescindível, para além do mais, para salvarmos aquele que foi (e ainda é…) o melhor serviço público do regime democrático português.”. Uma óbvia e obrigatória referência ao SNS, que celebrou recentemente 40 anos de existência, mas que alguns dos que o dizem publicamente defender, por palavras, o que têm feito, desde há uns tempos a esta parte, é asfixiarem-no lentamente até à sua total inviabilização a prazo.
Como refiro no meu livro “Ode ou Requiem”, “os tempos por que passamos caracterizam-se, entre outras coisas, pela progressiva desvalorização da semiologia clínica como elemento estruturante do ato médico, pelo refúgio artificial nas soluções que remetem preponderantemente para a utilização dos impessoais meios tecnológicos, pela fuga inconsciente dos cenários em que decorre o sofrimento alheio (e, também, o próprio…), pela negação subconsciente da finitude inevitável da vida, bem como pela procura consciente, incondicional e, por vezes, mesmo desenfreada, mas errônea, do prazer, da infalibilidade e da fama a qualquer preço e em todas as circunstâncias e lugares, como se isso fosse a principal condição de felicidade do Ser Humano”. O que tem óbvias e substanciais implicações no modelo de relação Médico-Doente que aqui os Autores pretendem explanar e defender.
Por tal, é bom afirmarmos com toda a convicção que aquela a relação possui, como se demonstra neste Livro, e escrevi no texto do editor, “características tão identitárias, que só pode ser concebida como um relacionamento entre iguais, do Homem para o Homem, ou seja, enquanto este for o Ser que hoje conhecemos (com a capacidade de se emocionar, de se condoer, de se indignar, de transportar um notável conjunto de valores civilizacionais acumulados ao longo de inúmeras gerações, de poder fazer opções e julgamentos de natureza ética com base nos mesmos, e de possuir corpo e espírito) deve ser sempre tratado por alguém com idênticos atributos. Quando vier, eventualmente, um destes dias, num futuro mais ou menos longínquo, a ser um ente biónico, composto por um conjunto de circuitos eletrónicos e de peças de material inerte descartável, fará então todo o sentido que passe a ser tratado por um mero “robot” e não por alguém originado e criado com amor por seres semelhantes, logo, perecível, falível, provido de inteligência emocional, e de uma tosca amálgama de pelos, pele, músculos, osso, nervos, sangue e alma feito, porque esse é o magma biológico polvilhado de sentimentos, onde assenta a bela e imperfeita estrutura da condição Humana”. Estrutura que é, por definição, a dos Autores deste Livro e a dos Doentes cujas histórias clínicas nele se contam.
Autores que, tendo lógicas razões para se sentirem naturalmente honrados com o convite endereçado pela Comissão Editorial para participarem nesta aventura coletiva, não deixaram, apesar disso, de estarem bem cientes de que muitos outros o poderiam ter sido também, com equivalente grau de merecimento e de empenho nesta nobre missão, mas que, espero, no que se refere a estes últimos, que não deixem de se sentir, por isso, nele menos representados, porque esta iniciativa também visa a celebração, em uníssono, de um conjunto transversal de intemporais princípios e valores que nos devem unanimemente definir enquanto classe profissional.
Para salvaguardarmos esta postura iminentemente humanística da prática médica, seria certamente necessário passar a investir muito mais na formação dos novos alunos e dos novos internos nas disciplinas ditas do foro das Humanidades como é referido no Livro por alguém insuspeito, a par do óbvio estudo da matéria médica propriamente dita, em vez de se endeusar sempre as capacidades omnipotentes, omniscientes e omnipresentes da fria tecnologia, que tudo parece tornar verosímil aos olhos dos Homens e representar a resposta infalível para todas as suas dúvidas e problemas, mas, não deixando, pois, de transmitir sempre a noção de que existem, não apenas um, mas antes dois significados igualmente válidos para a agora tão usada expressão de “Medicina Personalizada”: a versão tradicional que jamais deverá ser abandonada, ou seja, aquela em que o seu exercício deverá supor sempre o respeito pela ética e pelo conjunto de características (psicológicas, filosóficas, antropológicas, sociológicas e religiosas) de cada indivíduo, na persecução do princípio segundo o qual “uma doença idêntica numa pessoa diferente é uma doença distinta”, e, a mais recente, mas igualmente válida e promissora, em que o que se valoriza, acima de tudo, é a singularidade do património genético de cada ser, e assim se possa compreender melhor porque é que um determinado fenómeno fisiológico, em doentes diferentes, produz efeitos distintos, ou porque é que, para a mesma doença, pessoas diferentes reagem de modo desigual ao mesmo tratamento farmacológico.
Foi imbuído deste espírito de Humanismo que decidi ilustrar este Livro com um conjunto de pinturas que são como que uma História da Medicina através desta insigne forma de arte pela qual me apaixonei desde criança, o que extravasa em muito a pretensão, de resto também legítima, de o tornar visualmente mais atrativo ou esteticamente mais conseguido, porque, se algumas das imagens quase que falam por si mesmas, outras há que impõem ao leitor, tanto um esforço de investigação acerca da biografia dos seus autores, como a necessidade de o mesmo revisitar a História da Medicina, no intuito de melhor apreender o respetivo encadeamento e adequação ao texto.
Também idêntica ilação se poderá retirar do facto de termos optado por trazer para esta cerimónia um momento musical, como forma de fazermos uma justa homenagem a dois notáveis membros da nossa classe, recentemente falecidos: os colegas Antero da Palma Carlos (um dos Autores) e Álvaro Malta (por ele referido no seu texto), pois, foram, respetivamente, um grande conhecedor da ópera e um grande intérprete desta mesma forma de arte dramática, e cujo conhecimento tão útil poderia ser no ensino da medicina, certamente a par de outros, como a já referida pintura. Mensagem de idêntica índole se pretendeu transmitir, ao termos também decidido incluir textos de outra insigne personalidade da medicina contemporânea portuguesa, o colega João Lobo Antunes, que também deixou o nosso convívio há pouco tempo, do qual se repescaram alguns excertos dos seus magníficos escritos, selecionados e comentados pela sua esposa, também colega de profissão e Autora deste Livro, Maria do Céu Machado.
Em consonância, importa sobremaneira afirmar com grande convicção que, se devemos agir sempre como sendo os herdeiros da vetusta e honorífica tradição dos nossos venerandos e intemporais Mestres (de Hipócrates a Abel Salazar, passando por Maimónides, William Osler, Pulido Valente, Corino de Andrade e muitos outros), jamais poderemos desvalorizar ou desconhecer a que deriva diretamente da mais brilhante geração de médicos portugueses, simbolizada na gesta de judeus sefarditas que tiveram que se exilar fora da sua Mãe-Pátria, fugidos à tenebrosa inquisição, tão corajosamente retratada pela insigne figura de Padre António Vieira, e que, no espaço de cerca de dois séculos, trataram grande parte das elites, não só do Velho Continente, mas igualmente das Terras da Sublime Porta (onde muitos se refugiaram quando aí reinava a tolerância religiosa) e do Novo Mundo, cuja herança devemos pois assumir com enorme orgulho, tal como refiro no texto “Fragmentos” no capítulo “Fundamentos” deste Livro. Amato Lusitano, Ribeiro Sanches e Jacob Castro Sarmento são disso eloquente exemplo, a par de umas largas dezenas de outros nossos compatriotas, o primeiro dos quais, autor de um “Juramento Médico” que permanece, infelizmente, como nunca me cansarei de referir, quase que desconhecido até aos dias de hoje.
Por todas as razões já explanadas, devo dizer que a minha opinião relativamente ao eterno e nunca conclusivo debate que existe acerca da natureza da Medicina, no qual se discute se é Arte, ou se é Ciência, é a de que, possivelmente, poderá (e deverá) ser ambas as coisas em simultâneo! Ou seja, é uma “Arte” que aspira a utilizar a metodologia científica e, na realidade, se serve das ditas ciências básicas para construir o seu edifício identitário de princípios e de valores, sem ser propriamente ciência pura, nem sequer pretendendo ou devendo restringir-se apenas a tal condição. Assim, é Arte, no modo de relacionamento entre o médico e os seus doentes. Continua a ser Arte, na apreciação e contextualização das subjetividades da anamnese e das emoções na decisão clínica. É, ainda, Arte, na conceção intelectual e estética da arquitetura do diagnóstico diferencial. É Ciência, em tudo o resto.
Nesta altura da exposição, não poderia deixar de fazer ainda uma breve referência a algumas reflexões com óbvias implicações políticas, perguntando: Como compatibilizar o dever de tratar, muitas vezes acolhendo, por mero imperativo ético e científico, a efetiva inovação terapêutica e tecnológica, que tem custos avultados e crescentes, representando frequentemente a melhor, ou mesmo a única resposta possível aos problemas concretos dos doentes, com o irrealista espartilho do controlo financeiro que as hierarquias politico-administrativas cegamente impõem aos decisores clínicos, ou com o inflacionamento desproporcional do seu custo relativamente à capacidade económica da maioria dos cidadãos, ou à riqueza dos países? Como manter os profissionais de saúde motivados, com salários cada vez mais desajustados do custo de vida e das legítimas aspirações dos mesmos e das suas respetivas famílias, numa profissão com tão grandes responsabilidades e exigências, na qual o doente jamais deveria ser reduzido à condição de ser uma mera fonte de rendimento ou, mesmo, em certas circunstâncias cada vez menos raras, um meio de pura sobrevivência económica do médico? Como evitar os conflitos resultantes da má prática e da displicência, com os médicos em estado de profundo “burnout”, muitas vezes sem as condições de trabalho adequadas, a terem que resolver problemas complexos num espaço de tempo irrisório e desprovidos de suficiente estímulo e compensação para a vital missão de poder transmitir desinteressadamente os seus ensinamentos e a sua experiência, indispensáveis que são às novas gerações em formação?
As respostas extravasam largamente as competências de quem está investido no ingrato papel de administrar uma qualquer unidade prestadora de cuidados de saúde ou em gerir uma faculdade, devendo antes ser dadas por quem tem responsabilidades executivas na esfera governamental em ambos os setores. Mas, nunca, através da implementação de eufemísticas “reformas”, “reestruturações” ou “requalificações” eternamente adiadas ou adulteradas e pouco consensuais, chavões que, na realidade, se têm caracterizado por estarem, muitas vezes, vazios de conteúdo e desinseridos de estratégias coerentes ao serviço do Bem Comum, apenas mecanicamente repetidos porque o calendário eleitoral a isso ciclicamente obriga, tendo como consequência constituírem-se como uma ameaça crescente à qualidade da medicina praticada e com as implicações que estão à vista de todos os mais lúcidos e informados e que de nada vale a pena negar ou esconder.
A que acrescentaria que, à OM, enquanto associação que tem as competências delegadas pelo Estado no que concerne à autorregulação do exercício profissional, cabe a inalienável missão de não deixar de corresponder cabalmente ao que dela se exige neste domínio, tal como decorre da correta aplicação do espírito dos seus estatutos e do código deontológico em vigor, para que jamais os seus membros deixem de ser olhados por todos os outros atores envolvidos nesta temática, como o melhor garante daquilo que é o amago deste Livro: a defesa da prática humanizada da medicina de acordo com a ética e a “legis artis”, pois só assim conseguiremos demonstrar que continuamos a ser consequentes com o que aqui afirmamos e celebramos.
É que a citação de índole hipocrática, tantas vezes repetida, apenas porque parece mal não o fazer, onde se clama que “curar umas vezes, aliviar outras, mas confortar sempre” ser a que melhor define a missão do médico, além de ser um imperativo intemporal de consciência profissional também, comporta ainda algo de tão transcendente importância, que só é passível de se poder concretizar, passo-a-passo, num percurso de solidária parceria sem reservas, em que as idiossincrasias, quer do médico, quer do doente, se potenciem a favor de uma comunhão espiritual, imbuída de solidariedade, de comiseração, de confiança e de empatia, que permita, nas circunstâncias em que tal se aplicar, a aceitação, com o mínimo sofrimento possível, da deficiência, quando não, da própria morte, sem nunca retirar a derradeira centelha de esperança. Muitas vezes, olhar nos olhos do outro com ternura, dar as mãos com suavidade e ouvir a respiração do doente em solidário silêncio, é o mais humano dos possíveis tratamentos. Impõe-se reconhecer, pois, que o imprescindível diálogo que devemos saber cultivar sempre, não se esgota no simples uso da palavra, e o efeito terapêutico não se restringe à adequada utilização dos fármacos ou do instrumental cirúrgico. Assim, poderemos afirmar que a verdadeira dimensão desta inolvidável relação, no seu início e no seu términus, só deverá ter aqueles dois empenhados protagonistas.
A finalizar, impõe-se que assumamos sem subterfúgios que, diagnosticar, tratar, curar, cuidar, acompanhar ou partilhar solidariamente a alegria, a angústia e o sofrimento dos outros, é compreender a essência do Homem e da Humanidade, ditames a que jamais alguém deverá ficar indiferente, em especial, o Médico. A que acrescentaria, de uma forma assumidamente provocatória que, na minha opinião, a este profissional não deverá jamais caber, na âmbito da sua missão corretamente entendida, contribuir, direta ou indiretamente, implícita ou explicitamente, para que qualquer membro da nossa espécie venha a apoderar-se daquilo que deve continuar a permanecer como propriedade exclusiva e distintiva das divindades, ou seja, o acesso à eternidade, como penso estar simbolicamente subjacente ao “quase tocar os dedos entre Deus e o Homem” na intemporal pintura do genial Michelangelo, denominada de “A Criação de Adão”, no teto da Capela Sistina do Vaticano. Tão só, porque a Morte, sendo certamente o último capítulo da Vida, dela faz parte indissolúvel e isso é condição indispensável de dignidade e de manutenção da nossa existência coletiva nesta casa comum que habitamos há muitos milénios e que deve continuar a ser saudavelmente habitável, para que as gerações futuras possam sentir o prazer de nela viver, condição a que todos os Seres Humanos legitimamente aspiram.
Concluindo, nem tudo o que é técnica e cientificamente possível de ser implementado é eticamente lícito, pois a eventual concretização daquele hipotético cenário, seria como que um novo Holocausto, em que as vítimas não seriam, agora, com o foram outrora, apenas os crentes de uma determinada fé religiosa ou etnia, mas antes toda a Humanidade. Seria o fim da Medicina, do Ato Médico e da relação Médico-Doente tal como aqui os Autores deste Livro quiseram hoje dar lúcido testemunho.
José MD Poças
Setúbal 2019/11/25
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